A Dor Silenciada do Homem Negro
Reconhecer estas histórias e dar-lhes espaço e escuta é, antes de tudo, um acto de humanidade.
Há dores que o tempo não apaga. Há feridas que não cicatrizam só porque os anos passam. Entre elas, encontra-se a dor de muitos homens negros que, ainda em tenra idade, foram afastados das suas famílias e entregues a contextos onde a segurança física foi, muitas vezes, conseguida à custa de um profundo abandono emocional. Não são histórias raras, embora se fale pouco delas. Talvez porque a sociedade não queira ver para além da imagem que estes homens projetam hoje: uma postura aparentemente agressiva, reativa, desconfiada. Mas quem olha com olhos de ver, encontra por trás dessa armadura um menino ferido, que só queria – e ainda quer – ser amado e cuidado.
A rejeição, quando vem da família de origem, fere de forma particular. Não se trata apenas de perder um vínculo: trata-se de perder a base do próprio sentido de pertença. Para muitas crianças negras, esta rejeição é agravada por dinâmicas raciais. Num mundo em que corpos negros continuam a ser lidos como menos dignos, a rejeição familiar ecoa o preconceito social, validando um sentimento de não merecimento. "Se nem os meus me quiseram, como posso esperar que o mundo me aceite?" — é um pensamento que se entranha cedo.
Quando, em seguida, a criança é entregue a familiares onde, em vez de amor e segurança, encontra maus-tratos ou desvalorização, a dor transforma-se em trauma profundo. O psicoterapeuta Daniel Gaztambide mostra como as feridas de rejeição e abandono, quando atravessadas pelo racismo, marcam profundamente a vida adulta. Moldam a forma como muitos homens negros se veem, se relacionam e até como habitam o próprio corpo.
Algo que Frantz Fanon já tinha compreendido de forma profunda. No seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, descreve como o homem negro aprende, desde cedo, a vestir uma "máscara" para sobreviver num mundo que o desumaniza. Mas essa máscara não apaga a dor — apenas a esconde. Por trás dela, continua um ser ferido, em busca de reconhecimento e pertença.
Recentemente, tive uma conversa profunda com um homem negro que acabara de conhecer. Por alguma razão, confiou em mim e partilhou factos muito sensíveis da sua vivência. Contou-me que, ainda muito novo e por causa da guerra, foi afastado da sua família de origem e entregue aos tios, numa tentativa de garantir a sua sobrevivência e proteção. No entanto, esses tios nunca o trataram como um dos seus. Pelo contrário, o acolhimento foi marcado por distância e maus-tratos. Enquanto falava, eu não conseguia deixar de pensar na sua resiliência e na sua dignidade. Apesar das dores que carrega, este homem escolheu trabalhar numa área tão exigente como a intervenção social com jovens, mantendo o foco em ser um pai que deixa um património — emocional e material — para que os seus filhos não precisem de passar pelo que ele próprio passou. Disse-me que, pela sua comunidade, seria capaz de dar a vida, pois sabe que é apenas em comunidade que se consegue resgatar aquilo que a escritora Sobonfu Somé descreve no seu livro O Espírito da Intimidade: uma força colectiva que sustém e cura os seus membros.
O que me tenho vindo a aperceber, ao conversar com homens negros, é que muitos carregam dores da infância que preferem não confrontar, por serem demasiado dolorosas. A ausência de espaços seguros para esse confronto, e a pressão cultural para "ser forte" e "não mostrar fraqueza", fazem com que essas dores se mantenham silenciadas e somatizadas. Muitas vezes, só emergem em conversas de confiança ou em momentos de grande vulnerabilidade.
É fundamental reconhecer esta dor e o seu impacto prolongado. Não basta dizer que "agora são homens" e esperar que reajam com a serenidade de quem teve uma infância segura. A infância roubada não desaparece com a idade; muitas vezes molda toda a vida adulta. E este é um aspecto que tantas abordagens terapêuticas ou sociais negligenciam: antes de ser um "homem negro com comportamentos difíceis", é um menino ferido que nunca pôde curar-se.
Criar espaços seguros onde estes homens possam aceder e cuidar da sua dor não é só um acto de justiça, é um imperativo humano. Implica reconhecer que a luta que carregam não é apenas contra o racismo estrutural ou as desigualdades presentes — é também contra fantasmas antigos, contra silêncios que gritam por dentro. Reconhecer estas histórias e dar-lhes espaço e escuta é, antes de tudo, um acto de humanidade. Porque ninguém deveria ter de viver toda uma vida a carregar sozinho dores que não escolheu.