A estética negra: mais do que beleza, uma linguagem de resistência
A escolha estética de uma mulher negra pode ser escudo ou alvo.
Numa transmissão de um canal brasileiro, a atriz Erika Januza partilhou uma reflexão que ficou comigo: para a mulher negra, escolher roupa vai muito além da vaidade. Pode ser uma forma de proteção, uma porta que se abre ou se fecha, uma chave que molda os papéis que nos são permitidos ocupar. E isso toca fundo — quem vive num corpo negro conhece bem essa dança silenciosa entre liberdade e vigilância. Desde muito cedo, aprendemos que o nosso corpo fala antes de abrirmos a boca. A nossa aparência é constantemente lida, interpretada, julgada. Não com neutralidade, mas com base em estereótipos, normas coloniais e padrões de beleza que não nos contemplam. O cabelo natural é visto como desleixado. O batom vermelho é “demais”. A roupa colorida, “exótica”. Um decote, uma saia curta, uma unha pintada — tudo pode ser interpretado como ameaça, provocação ou inadequação. Quantas vezes nos disseram para “baixar o tom”, “alisar o cabelo”, “usar algo mais neutro”? Quantas vezes sentimos que precisávamos parecer menos “nós” para sermos aceites? Quantas portas se fecharam silenciosamente porque a nossa estética não cabia na norma?
A estética negra, quando assumida com orgulho, é resistência. É linguagem. É memória viva. Está nas tranças, nas cores, nas formas e texturas que carregam narrativas ancestrais. Está na escolha de usar um turbante não como acessório, mas como coroa. Está no ato de deixar o cabelo crescer livre — como quem reivindica autonomia sobre o próprio corpo. É um grito silencioso: “Eu estou aqui. E estou inteira.” Mas essa presença incomoda. Ainda hoje, em muitos espaços profissionais, académicos ou mediáticos, ser mulher negra com estética afirmativa é arriscado. Há uma expectativa constante de contenção — que sejamos sóbrias, neutras, discretas. Que diminuamos tudo o que possa ser lido como “demais”. Porque não se trata apenas de roupa — trata-se de liberdade. Quem nunca teve aquele momento de parar e repensar o que vestir ao saber que ia ocupar uma mesa onde seria a minoria — ou a única? Que impacto terá esta cor? Este penteado? Esta escolha? Seremos ouvidas? Seremos lidas como “competentes” ou apenas “exóticas”? Apanhei-me a pensar em quantas vezes planeei e repensei a minha roupa, não por vaidade, mas por receio. Por não querer chamar demasiada atenção. Por querer passar despercebida, para que o foco fosse apenas o meu trabalho. Santa ignorância. Como se o meu corpo alguma vez pudesse ser invisível. Como se apagar traços da minha identidade me tornasse mais profissional.
A escolha estética de uma mulher negra pode ser escudo ou alvo. Pode abrir portas ou torná-la num corpo indesejado. Aproximá-la de certos espaços ou expulsá-la deles. É injusto, mas é real. Por isso precisamos falar sobre isso. Precisamos nomear o racismo estético, o sexismo disfarçado de dress code, a violência simbólica que atravessa a nossa existência todos os dias. Quando Erika Januza diz que a roupa pode proteger ou limitar, ela está a revelar uma verdade que muitos preferem ignorar. E a legitimar algo que tantas de nós já sentimos: o corpo negro é sempre político, mesmo quando só quer existir. Assumir a nossa estética não devia ser um ato de coragem, mas um ato de liberdade. E, no entanto, tantas vezes é uma luta. Contra olhares, normas não ditas, medo de não caber. Mas também é afirmação de poder. Porque, ao ocuparmos espaços com a nossa imagem autêntica, ampliamos possibilidades para quem vem depois. A estética negra é, sim, beleza — mas também é identidade, orgulho, continuidade. É resposta e proposta. Uma linguagem que desafia os olhares eurocêntricos — e que seguimos a falar com força e dignidade.