Amor ao virar da esquina
Andamos tão intoxicados de más notícias que só conseguimos reparar no pior que acontece?
Enquanto ouço histórias de discussões de fazer parar o trânsito, reclamações sobre obras que nunca mais acabam, pilhas de lixo que forçam mudanças de trajectória, e relatos de acidentes desinibidores das mais mórbidas curiosidades, questiono-me: o que nos prende a atenção, e mobiliza reacções no corre-corre de uma cidade?
Andamos tão intoxicados de más notícias que só conseguimos reparar no pior que acontece? Estaremos a perder a capacidade de ouvir para além do ruído, e de ver para além do que nos assalta as vistas, e diminui perspectivas? Quando foi a última vez que reparámos na beleza dos encontros que, todos os dias, acontecem na cidade?
Dei-me conta, ao vasculhar a galeria de imagens que trago no telemóvel, que, no dia-a-dia pela cidade, travo muitas vezes o passo ao cruzar-me com mensagens de Amor.
Paro não apenas pela beleza que encontro nas palavras, mas também pelo poder regenerativo que produzem num quotidiano contaminado de degenerações afectivas.
É assim que me apanho a sorrir ao virar da esquina. Aconteceu, por exemplo, ao ver numa caixa de correio um autocolante com a mensagem “Só cartas de Amor”. Quis saber mais, por isso googlei por notícias que as notícias tardam em disseminar.
Foi desta forma que cheguei ao projecto “Vizinhos em Lisboa”, e à sua iniciativa para mapear os marcos de correio espalhados pelas 24 freguesias da cidade.
“Quase sempre passam despercebidos no nosso agitado dia-a-dia, mas são elementos de identidade colectiva, testemunhos de uma época em que a comunicação escrita tinha outro peso, e a rede postal era central para a vida urbana”, lê-se na mensagem de divulgação da iniciativa, que convida todas as pessoas a participar.
Os passos, que passo a reproduzir, estão descritos online: “Fotografem os marcos de correio da vossa rua ou freguesia; registem as inscrições visíveis (mesmo que parcialmente gastas); enviem-nos a localização aproximada (rua, número de porta ou coordenadas) para geral@vizinhos.org”.
A proposta, em construção, ganha vida aqui, lembrando que cada marco “carrega consigo inscrições, datas e memórias que fazem parte da história dos correios e da própria cidade”.
Viajo por essa cartografia, e tento imaginar quanto património sentimental cabe nesse património urbano. Percebo, então, que me alegra deambular por essas humanidades, porque me ajudam a sintonizar em discursos e actos de Amor.
Acreditem que estão por toda a parte, levando-me, por vezes, a tropeçar neles, como aconteceu numa das minhas últimas viagens de metro.
Já a caminho da saída da estação, num sobe e desce de escadas, detive-me num pedaço de papel perdido entre degraus. Hipnotizada pela imagem de um coração, que acompanha uma mensagem manuscrita, leio: “O meu Amor é até ao infinito”.
Registo em fotografia, e assumo imediatamente –talvez influenciada pela letra e um certo desalinho ortográfico – que a declaração traduz um enamoramento infantil.
É então que me lembro das cartas de Amor, e no quanto gostaria que o “Projecto de Mapeamento dos Marcos de Correio em Lisboa” se expandisse para além da geografia, desejo que me conduz a outra iniciativa: o podcast “Afetos”.
Criado por Gabi Oliveira e Karina Vieira, o formato deu origem à obra “Cartografia dos afetos: uma conversa sobre...autoamor”, da editora Fontanar.
“Este é um livro sobre Amor”, assinala na sinopse a psicanalista Elisama Santos, afastando, contudo, leituras simplistas. Afinal, explica, não se trata do Amor “da forma que aprendemos, que não nomeia o que dói, mas o Amor que constrói um novo mundo, reconhecendo o que precisa ser transformado.” A começar em cada um de nós.



