As miúdas querem-se como os carros: zero quilómetros
Num contínuo de degradação, é sem surpresa que se confundem agressões com gestos de amor
Numa conversa típica de pessoas que tinham acabado de se conhecer, e se preparavam para jantar juntas, começámos por trocar nomes e ocupações profissionais, partilhando também uma e outra frivolidade, entre desabafos de trânsito e apontamentos de meteorologia.
Palavra puxa palavra, ainda as apresentações iam nas entradas, quando me deparei com aquele que para mim foi o maior ‘indigestivo’ da noite: o fenómeno “Chica km 0”.
Ouvi-o na voz do espanhol Miquel Far Ferrer, especialista em masculinidades, que esteve em Portugal no encontro “(Des)igualdades no Feminino”, no qual também participei, juntamente com Catarina Rivero e Thaysa Viegas.
Antes do debate – e enquanto decidíamos opções de menu –, o também psicólogo social, psicoterapeuta familiar e professor universitário, descrevia aquele fenómeno como uma das expressões mais visíveis, em Espanha, do retrocesso na luta pela igualdade de género.
O nome, por si só, tem tanto de explicativo quanto de incompreensível.
“Chica km 0”, que podemos traduzir por “Miúda zero quilómetros”, equipara raparigas a carros, exaltando a falta de rodagem, que é como quem diz a virgindade, como um bem de valor superior.
A mensagem de objectificação e humilhação sobressai como mais uma expressão da chamada manosfera – ou machosfera – território fértil em misoginia, onde se cultiva a ideia de que a espécie masculina está sob ataque, por causa do “excesso” de liberdades das “fêmeas”.
É assim que, como quem propõe um regresso à idade das cavernas, eles cerram fileiras de resistência masculina contra “desobediências” femininas e feministas, amplificando, com a força polarizadora dos algoritmos, novos movimentos de violência de género. Nesta descida aos infernos, que mobiliza jovens de idades cada vez mais precoces, não faltam sequer apelos a abusos sexuais, a partir da propagação da crença de que a mulher existe só e apenas para servir o homem.
O fenómeno é indissociável do ambiente político que vivemos um pouco por todo o globo – marcado pela ascensão da extrema-direita –, mas reflecte também a incapacidade de actualização dos modelos e processos educativos, ultrapassados e substituídos por algoritmos esvaziados de qualquer filtro de sensibilidade humana.
Por isso, da mesma forma que os vemos impor formas de ser mulher, vemo-las internalizar a opressão, talvez em busca de algum retorno emocional a partir de um vínculo de validação masculina.
Num contínuo de degradação, é sem surpresa que se confundem agressões com gestos de amor, e se agravam as estatísticas da violência doméstica, desde 2013 alargadas à violência no namoro.
Escrevi recentemente sobre o tema no Gerador, e, já depois da publicação do artigo – que podem ler aqui – a história conheceu um novo confronto, desta vez materializado num vidro partido à entrada do prédio.
Aconteceu a meio da tarde de ontem, mas, logo ao final do dia, antes mesmo de os cacos terem sido recolhidos, ele e ela já desfilavam juntos, como se nada tivesse acontecido.
Seguem a alta velocidade e em contramão. Como se apenas a morte os pudesse separar.