Até que nem a morte nos repare
A vida não é justa porque, ao vivê-la, nem todos gozamos dos mesmos direitos.
A sentença repete-se à medida que o meu feed se enche de uma única notícia, ostensivamente enlutada. “A vida não é justa”, leio aqui, ali, e mais além, e, entre publicações de um pesar colectivo – mediaticamente inflamado e ‘abutremente’ explorado –, ocorre-me o quanto nos vamos habituando a calibrar a justiça da vida (e na vida) pelo momento da morte.
É assim que, aos olhos de muitos, ela se apresenta mais ou menos justa consoante sejamos, no dia do suspiro final, mais ou menos mediáticos; ou conforme tenhamos um desfecho mais ou menos inesperado, mais ou menos trágico, mais ou menos prematuro.
Contesto a fundamentação para o veredicto, ainda que concorde com a alegação: de facto, a vida não é justa. Mas não por morrermos jovens, subitamente ou idolatrados. A vida não é justa porque, ao vivê-la, nem todos gozamos dos mesmos direitos.
Então, em vez de nos limitarmos a lamentar a injustiça da vida, única e exclusivamente a partir de certas mortes ou diagnósticos, talvez nos devêssemos ocupar, enquanto estamos vivos, de defender uma vida justa para toda a Humanidade.
Comecemos, por exemplo, por humanizar todas as pertenças e existências, e por questionar a selectividade das nossas comoções: será a vida mais injusta para alguém que amou, foi amado, cumpriu planos e sonhos, mas morreu precocemente num infortúnio, ou para alguém que, tendo vivido muitos anos, teve sempre de combater ódios, agressões e rejeições, apenas por ser quem é?
Podemos procurar as nossas respostas, mas talvez não o queiramos fazer, porque isso implica reconhecer que todos temos a responsabilidade de tornar a vida mais justa ou, no mínimo, menos injusta.
Ainda assim, sabemos. Sabemos que a vida não é justa, não por ser frágil e volátil, mas por ser de tal modo desigual que o país pára por duas mortes, mas segue como se nada fosse perante genocídios e tantos crimes contra a Humanidade.
É de lamentar que os irmãos André Silva e Diogo Jota tenham perdido a vida de forma tão trágica e prematura, mas, infelizmente, está acima dos desígnios humanos impedir que infortúnios desta natureza aconteçam e se repitam. Pelo contrário, os crimes que Israel está a cometer em Gaza são humanamente condenáveis, sancionáveis e neutralizáveis. Podem e devem ser travados, mas continuam a ser ignorados.
Como explicar a tremenda disparidade entre uma avalancha de notícias sobre duas mortes acidentais, e uma orquestra de silêncios em relação às quase 60 mil vidas perdidas em resultado de ataques do Estado de Israel?
Talvez “ninguém’ repare nesses milhares de cadáveres porque o seu direito à vida nunca foi sequer reconhecido.
E aí reside a suprema injustiça humana: há marcas de nascença que nos condenam à morte, asfixiados num quotidiano de violência, invisibilizado e silenciado em teias globais de indiferença.
Porque é que nos custa tanto lamentar e reconhecer a injustiça das mortes que se acumulam na Síria, no Sudão, ou na Palestina? Porque é que nos mobilizamos para defender jacarandás e hesitamos na defesa de Direitos Humanos?
A vida só é injusta porque em vez de combatermos injustiças, e equilibramos desigualdades, agravamo-las à medida das nossas lutas de poder e títulos de vaidade proprietária.
Hoje culpamos a morte, amanhã e depois voltaremos a apontar o dedo à pessoa cigana, migrante, negra, lésbica, gay, trans, ‘burquinada’…
No fundo, todas as vidas servem de alvo desde que não tenhamos de olhar para as nossas, e confrontar o quão desumanos somos nas escolhas que fazemos. Até que nem a morte nos repare.