De Duas Margens
Há momentos num episódio que ficam connosco. Que continuam a ecoar mesmo depois de desligarmos os microfones.
No mais recente episódio d’O Tal Podcast, gravado com o Carlos Dias, houve um desses momentos. Quando o Carlos partilhou que muitas vezes não é reconhecido como cabo-verdiano pelos cabo-verdianos, nem como português pelos portugueses, senti-me tão próxima da sua experiência que lhe disse:
“Bem-vindo ao clube.”
Mas depois, veio a inquietação:
E se esta frase tiver soado ligeira demais para algo tão denso?
E se não tiver honrado as camadas de dor, busca e complexidade que nos atravessam quando falamos de identidade?
Da inquietação nasceu esta reflexão em forma de partilha.
Nasci em Portugal, filha de pais cabo-verdianos. Cresci entre dois mundos: o da Margem Sul — onde me formei, cresci e vivo — e o da cozinha cheia de cachupa, mornas e histórias contadas à volta da mesa. Sempre me senti ligada, mas nem sempre reconhecida. E, por vezes, também não me reconheci a mim mesma — nessa mistura onde tudo parece ser e não ser ao mesmo tempo.
Foi na universidade, ao interagir com a comunidade de estudantes cabo-verdianos, que comecei a perceber uma série de lacunas identitárias em mim. Havia referências que me faltavam, palavras que eu não sabia, códigos que me escapavam. E ali compreendi que não basta herdar uma cultura — é preciso escutá-la, estudá-la, praticá-la.
Essa vivência inscreve-se naquilo que os estudos chamam de identidade diaspórica, liminaridade cultural, não reconhecimento intra-grupo. Mas nenhuma teoria suaviza o que o corpo sente quando não encontra chão.
E é aí que entra a minha responsabilidade.
Se quero conhecer-me, preciso escolher. Escolher escavar. Escolher perguntar. Escolher aproximar-me.
E não sinto que tenha de escolher entre as duas identidades. Não sou uma em detrimento da outra. Sou portuguesa e também cabo-verdiana. Ou, se preferirem, sou cabo-verdiana e também portuguesa. Ambas me habitam, ambas me formam, ambas merecem ser reconhecidas na sua inteireza — por mim e pelos outros. Esta consciência, que me demorou a consolidar, é hoje um dos pilares da forma como me movo no mundo.
E faço este caminho também por amor a Portugal. Porque amo este país. Porque cresci cá, porque me sinto daqui — e porque desejo, profundamente, que sejamos um país mais humano, mais consciente, mais amoroso, mas também mais elevado. Justamente por esse amor, reconheço o que ainda nos distancia desses ideais: a falta de escuta, a invisibilidade imposta, a resistência em acolher verdadeiramente todas as histórias que cá habitam.
De Portugal, trago o valor da palavra, do silêncio que diz tanto, da escola pública que me moldou. De Cabo Verde, trago o corpo que dança sem pedir licença, a voz da Cesária nas manhãs de domingo, o crioulo que me atravessa mesmo quando o falo pouco. São raízes diferentes, mas que se entrelaçam em mim com profundidade.
Sei que a história entre Portugal e Cabo Verde é atravessada por feridas coloniais. Essa herança ainda ecoa nas dinâmicas de poder, no reconhecimento (ou falta dele). Falar sobre isso não é para culpar — é para compreender. E, talvez, começar a curar.
Há dias, o meu filho perguntou-me: "Mãe, como é que eu me conecto mais profundamente com as minhas raízes cabo-verdianas? Eu sinto-me angolano, português e cabo-verdiano, mas só estive uma vez em Cabo Verde. E o que sei é através dos avós."
Respondi-lhe: "Começa por escolher Cabo Verde como um destino frequente. Pisa aquela terra com tempo. Deixa que o teu corpo abrace o lugar — o mar, as montanhas, os cheiros, os sorrisos. Porque só vivendo, e não apenas ouvindo falar, é que o sangue que corre em ti se reconhece. A tua medida de pertença virá com a tua medida de consciência."
Talvez tenha dito aquilo tanto para ele como para mim.
Ainda hoje, continuo esse caminho. Sem a expectativa de um ponto de chegada, mas com o compromisso de me aproximar cada vez mais — da história, da cultura e, sobretudo, das pessoas. Quero que o que me une a Cabo Verde seja mais do que a memória dos meus pais. Quero que seja um vínculo real, vivido, escolhido.
A identidade não é um rótulo fixo. É um gesto contínuo de escuta. E, muitas vezes, de humildade.