Descansar para Desarmar
Que nos tornemos conscientes das armadilhas que nos mantêm em alerta permanente e que nos roubam energia
Desde a adolescência, tenho uma relação conturbada com o descanso. Sempre senti que tinha de estar alerta, sempre pronta para responder, para agir, para resolver. Parar parecia um risco: perder oportunidades, deixar alguém à espera, não estar à altura. Cresci a acreditar que descanso era fraqueza. O meu corpo habituou-se a não baixar a guarda — e eu confundi isso com força.
Mas, recentemente, ao explorar autores negros que falam sobre descanso, deparei-me com Tricia Hersey, fundadora do Nap Ministry. A imprensa dos Estados Unidos chama-lhe “Nap Bishop” ou, em alguns artigos, “Nap Guru”, mas o que define verdadeiramente Hersey é o seu trabalho político, artístico e espiritual: ela vê o descanso como prática de cura e de libertação. Formada em Saúde Pública e Teologia, criou experiências coletivas de repouso — pessoas deitadas, a fechar os olhos, a respirar, e depois a conversar sobre isso. Chamou a este trabalho “rest as resistance” — descanso como resistência.
Encontrar o trabalho dela mostrou-me que o descanso não é apenas pessoal; é político, uma recusa de medir o nosso valor apenas pela produtividade, uma reparação para corpos exaustos, sobretudo negros e femininos.
Ao mesmo tempo, penso no último episódio com a Vânia Andrade, quando ela fala do cuidado mútuo com o companheiro e da simplicidade de massajar-lhe os pés. Não como submissão, mas como escolha. Não como renúncia, mas como gesto de afeto. É, como bell hooks escreve em Tudo do Amor, permitir-se repousar, receber cuidado, estar presente sem sentir culpa. Descansar e ser cuidada não diminui ninguém; pelo contrário, reconecta-nos connosco mesmas e com os outros.
Falar de descanso é, para mim, admitir que ainda estou a aprender a repousar sem culpa, a receber sem sentir que devo algo em troca, a dar sem perder a mim mesma. Descanso é presença, é pausa consciente, é libertação. É o espaço onde nos permitimos desarmar — das pressões externas, do perfeccionismo, do alerta constante. É aqui que o corpo encontra o que a pressa não oferece, que a mente se reconecta com a criatividade e que a alma se lembra que existe.
Descansar para desarmar significa exatamente isso: reconhecer que o descanso não é fuga, não é passividade, não é fraqueza. É prática de liberdade, ato de resistência, cuidado radical. É abrir espaço para sermos humanas num mundo que nos exige sempre mais, é criar comunidades onde o repouso é valorizado, é assumir que merecemos estar inteiras sem fazer mais do que aquilo que nos dá sentido e energia.
Talvez este episódio seja também um convite para refletirmos sobre a nossa própria relação com o descanso. Que nos tornemos conscientes das armadilhas que nos mantêm em alerta permanente e que nos roubam energia. E que, mesmo que por instantes, nos permitamos descansar de corpo e mente, reconhecendo que este gesto simples é radical, reparador e profundamente necessário.
Não é que esteja totalmente “curada”, pois foram anos a viver sem prestar real atenção ao descanso, mas estou muito consciente de que deve ser uma das prioridades de quem está envolvido ativamente em projetos de impacto social. Aprendi que descanso não é perder tempo; é preparar-nos para estar inteiras, com energia e clareza, para o trabalho que realmente importa.