A conversa já ia avançada quando, entre esgares de desassossego, o Renato interjeccionou qualquer coisa do tipo: “Como é que aguentas?”.
Estávamos a falar sobre activismos, a partir do podcast narrativo “Portugal Negro: Uma História silenciada”, e a questão surgiu no compasso de um longo e bem audível suspiro.
Para o Renato – homem branco recém-iniciado na identificação e desconstrução de distorcidas programações racistas –, o meu dia-a-dia de embates e combates em defesa da igualdade sobrecarrega-se de um peso pouco suportável, e até mesmo insuportável.
A dedução não me surpreende, porque por mais empatia que mobilizemos, e por muito que exercitemos a capacidade de calçar os sapatos de ‘outra’ pessoa, fazemo-lo sempre do nosso lugar. É assim que, mesmo munidos de toda a nossa boa vontade, demasiadas vezes continuamos sem perceber que, do outro lado, em vez de sapatos existem pés descalços.
Chamemos-lhe ‘cegueira de origem': a dificuldade – que tantas vezes resvala para a incapacidade – de vermos para além dos nossos lugares de partida. Como se a nossa Humanidade não fosse um direito inalienável consagrado à nascença, mas sim um campo de batalha minado por muros e mais muros.
A boa notícia é que essas cercas não são intransponíveis, e, podem, inclusivamente, ser substituídas por pontes.
Mas, se não estamos condenados a não ver, porque é que muitos escolhem fazê-lo, fechando-se nas suas bolhas? Porque é que se recusam a ouvir quem está do “outro lado”? Porque é que rejeitam antes de conhecer? Porque é que assumem que “estar do outro lado” significa “não ser do mesmo lado”?
Acredito que por medo. Não do desconhecido, como se gosta de racionalizar, porque, se assim fosse, não teríamos tantos álbuns de viagens “exóticas”, e restaurantes sem fronteiras.
Desconfio que todos aqueles que defendem muros e apregoam riscos de invasão têm medo de deixar de ser reconhecidos como parte da estirpe do “humano universal civilizado”.
É nesse receio que assenta a teoria da substituição: não numa qualquer defesa de identidades nacionais, mas no acolhimento humano da nossa diversidade, e consequente apagamento de ideais de superioridade.
Quem é que não aguenta viver com esta possibilidade?
É graças a ela que eu aguento: com total confiança na força colectiva, e no poder de humanizarmos as nossas relações.
Acredito que construir pontes, em vez de muros, permite transformar a ‘cegueira de origem’ numa visão de mundo partilhada, que temos de exercitar todos os dias.
Porque do lado do muro em que me encontro – cimentado por séculos de narrativas e leis de desumanização das pessoas negras, ainda hoje perpetuadas por políticas de opressão e exclusão –, “aguentar” significa avançar em defesa da minha-nossa Humanidade.
É sobre isso que são as lutas negras: sobre a reivindicação do direito a uma vida humanizada, que passa por contar a nossa História, conservar as nossas memórias, e celebrar – sem romantizar – as nossas vitórias.
Aguento, e aguentamos, porque somos e sempre fomos ponte. E se estamos aqui hoje, à conversa e sem reservas, é porque acreditamos que ninguém deve ser excluído, e ficar confinado a muros.
É então que pergunto: como é que se aguenta a vida do outro lado? Como é que se aguenta viver de estratificação e desumanização de pessoas?
Sei apenas que do lado de quem nasce sem nada a perder e vive de sobreviver, ficar em cima do muro não é opção. É privilégio.