Entre troféu e refém, a distracção de ser mulher
Como se a existência feminina se reduzisse ao que se vê, ou àquilo que a sociedade decide que está a ver.
Aterrei na discussão em fase de rescaldo, quando caixas e mais caixas de comentários e reacções de indignação já se cruzavam com inúmeras sentenças de condenação, todas sustentadas em argumentos de superioridade moral e humana.
“Viste bem a expressão dela?”, ouço de um lado. “Vê-se bem que vive aterrorizada”, leio de outro, antes de receber, entre partilhas de links, correntes de expressão feminina e feminista: “Sabemos bem o que ele vale! Alguém tem de o travar”.
Mais palavra, menos palavra – a que se foram somando incontáveis memes de escárnio e maldizer –, a aparição de Kanye West e Bianca Censori na última cerimónia dos Grammys salientou, aos meus olhos, um pensamento único que teima em prevalecer: “Mulher não tem querer”.
Como alguém que nunca tinha sequer ouvido falar em Bianca Censori antes desse episódio viralizar, e não tem quaisquer referências sobre ela, a não ser online, respondo que me sinto desqualificada para avaliar as suas expressões faciais, da mesma forma que não posso concluir, a partir do que veste, seja o que for da sua relação com Kanye West.
“Mas sabes que é ele quem a veste, não sabes?”, pergunta-me uma colega, insistente na missão de me convencer sobre a total submissão dela. “Tens a certeza que olhaste bem para ela? Ela está desconfortável e com medo”.
Contesto: e se estivesse vestida com a mesmíssima expressão, estaríamos a ter esta conversa? Quanto da discussão se deve à demonização do corpo feminino e da nudez? Além dos questionamentos – intencionalmente desligados de protocolos de indumentária e apreciações de bom gosto –, acrescento duas hipóteses à conversa. Antes de mais, poderá a ideia do look despido ter partido de Bianca? Tendo a proposta de figurino surgido de Kanye, poderá Bianca ter validado, e até exultado com a possibilidade?
Ambas as opções resultam de um princípio que, aparentemente, ainda causa estranheza: as mulheres têm poder de escolha e decisão, e, por vezes, decidem desafiar normas e padrões.
Não estou com isto a desprezar o efeito paralisante de situações de violência doméstica, crime que desde o início do ano já custou a vida a cinco mulheres em Portugal.
Pelo contrário, estou consciente de que o abuso psicológico é, demasiadas vezes, uma agressão que se relativiza, conforme tão bem alertou Ana Marta Faial, na conversa que tivemos, no arranque da nossa quarta temporada.
Mas nada disso me habilita a avaliar a relação de Kanye West e Bianca Censori, por mais criticáveis que sejam muitas das declarações e comportamentos que sobre ele têm vindo a público.
O que sei é que parto sempre do princípio que, salvo circunstâncias especiais, onde se inclui a inimputabilidade, as pessoas têm liberdade de escolha. No limite, até para decidirem em seu prejuízo.
Sei também que a narrativa seria diferente se Bianca Censori tivesse aparecido sozinha, mas desconfio que continuaria a estar assente numa ideia de objectificação, desempoderamento e superficialidade.
Como se a existência feminina se reduzisse ao que se vê, ou àquilo que a sociedade decide que está a ver.
Não reside aqui a verdade condição de reféns? Afinal, o que podemos ser para além do que aparentemos ser?