Li o futuro, e descobri que me tornei desnecessária
Em liberdade total, e sem quaisquer constrangimentos, como se expressará a nossa Humanidade?
Diante de mim estavam 42 cenários. Seguindo as instruções apresentadas, agitei o oráculo de madeira e tirei de lá um papel. “Parece-lhe um futuro desejável, ou indesejável?”, quis saber uma das ‘guardiãs’ desta apetecível estação da fortuna, prosseguindo com as direcções: “Se for animador, pode ficar com a mensagem. Caso contrário, pode libertar-se, amarrando-a àquela árvore que ali está”.
Hesitei na escolha: guardar ou largar?
“É natural”, tranquilizou-me a anfitriã, guiando-me pela mecânica do processo. “Aqui nenhuma previsão é 100% positiva ou 100% negativa. Vai depender sempre da interpretação de cada pessoa”.
Quase um mês depois desta experiência, vivida no Festival Future Days, em Lisboa, regresso ao meu fadado destino, recuperado algures entre esvaziares de bolsos e troca de malas.
De novo munida do papel da sorte, recupero a dinâmica da denominada instalação imersiva Futures Omikuji, desenvolvida como uma reinterpretação de um milenar ritual japonês de adivinhação: o omikuji.
“Tradicionalmente, a prática envolve tirar aleatoriamente um papel com uma previsão sobre o futuro, mas, nesta versão moderna, os participantes são desafiados a explorar 42 cenários sobre como poderemos viver, pensar, trabalhar, comer e conectarmo-nos no ano de 2050”.
A mim, que ando sempre a correr, de prazo em projecto, calhou-me em sorte – certeiramente – ser desnecessária.
Inquieta com a estranha possibilidade, lá me consegui refazer do choque do título e, por várias leituras e releituras, detive-me, finalmente no destino. Reza assim: “O mundo zune sem ti/ Nenhuma tarefa espera pelas tuas mãos/ Nenhum prazo precisa do teu fôlego/ Cuidam de ti. Estás viva, livre de fardos/ Tens tempo para sentir. Para vaguear. Para escolher/ Se já não és essencial, o que oferecerás simplesmente porque podes?”.
Atarantada com a minha predestinada inutilidade – que nem em períodos de férias se manifesta completamente –, e incapaz de a rotular entre o desejável e o indesejável, guardei-a comigo. Aparentemente, estive longe de ser a única.
“Pode ficar com o papel, e, no seu próprio tempo, encontrar não só uma resposta, mas também traçar uma realidade em que ela se concretiza”, informa-me a ‘guardiã’, dirigindo-me para a proposta de reflexão: “Como seria viver nesse futuro?”.
Hesito novamente.
Contaminada por um presente sobrepovoado de urgências e emergências, a ideia de um amanhã onde as necessidades básicas estão garantidas e a pressão da produtividade desaparece soa tão irrealista que, num primeiro momento, me parece inútil tentar sequer contemporizá-la.
Lembro-me, então, de uma morte há algum tempo anunciada, e cada vez mais acelerada: a da imaginação, esvaziada por automatismos quotidianos, pressões e tensões sociais, e uma crescente erosão e estrangulamento das relações humanas.
Se, de tão programada que estou para fazer, acontecer e responder, confundo demasiadas vezes essa rotina desenfreada com o valor da minha existência, como sonhar e concretizar colectivamente?
A obsessão produtiva em que estamos submersos, neste cada vez mais insano mundo capitalista, afasta-nos – intencional e acentuadamente – de quem somos, iludidos com as possibilidades de ter.
Sem qualquer contrapartida, financeira ou afectiva, o que seríamos capazes de entregar? O que estaríamos disponíveis para doar? E a quem?
Ficaríamos a sós, focaríamos no “nós”, ou, finalmente, nos dedicaríamos a “todos, todos, todos”? Em liberdade total, e sem quaisquer constrangimentos, como se expressará a nossa Humanidade? Quero acreditar que solidariamente.