Novo episódio: Bruno Furtado
“Como é que um Estado dá o nome de sistema de reinserção social quando não está a reinserir ninguém, e nem está preocupado com isso?”
Onze anos de prisão em quase 40 de vida dão a Bruno Furtado uma idade que não cabe em documentos. Mas são eles – os papéis – que marcam a sua história, já traduzida para o documentário “Complô”, que se estreia hoje, 20, nos cinemas de mais de uma dezena de cidades do país.
A produção, assinada por João Miller Guerra, já foi distinguida com uma Menção Honrosa, na última edição do Doclisboa, projetando uma condição pouco conhecida, ou até mesmo desconhecida em Portugal: a de “órfão do Estado”.
É sobre ela que gravita a existência de Bruno, o convidado desta semana de O Tal Podcast.
Nascido no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, Ghoya, como também é tratado, nunca viu reconhecido o direito a ser português.
Empurrado por sucessivas ‘armadilhas’ administrativas para as margens do exercício da cidadania, o rapper e ativista político conhece bem as impossibilidades de uma existência indocumentada.
“Colocam em causa a legitimidade do meu documento porque nasci em Santa Maria [no hospital] e sou cabo-verdiano. É como se fosse um gajo falsificado, como se não existisse”, conta.
‘Invisível’ no sistema dos direitos, e hipervisível no território dos delitos, Bruno começou cedo o seu percurso de institucionalização.
“As pessoas podem meter os rótulos que quiserem, mas se estamos num centro educativo somos crianças. Fizemos alguma coisa que justifica estar lá, tudo bem, mas chegamos e temos monitores que não estão preparados para lidar com a situação”.
Sem rodeios, Ghoya recorda, nesta conversa com Georgina Angélica e Paula Cardoso, o abandono infantil que viveu e testemunhou quando foi institucionalizado, e vê nele uma fonte de desigualdades estruturais.
Hoje pai de três, o rapper sublinha que as pessoas indefesas, como o são as crianças, devem ser cuidadas e protegidas.
A consciência mantém-no, por enquanto, longe dos filhos. “Estão em Inglaterra, com a mãe deles. Quero ir visitá-los, e não posso”, lamenta Bruno, expondo um dos efeitos da falta de documentos. “É um complô tão grande que nem se importam que tu saias [do país]. Depois, estás a entrar e dizem: ‘Não, desculpa lá, tu nem és português”.
A prática sobressai no documentário, que, tal como as músicas de Ghoya, denunciam os caminhos e descaminhos que se traçam entre excesso e défice de Estado.
“Essa vontade que a polícia sente de invadir os nossos corpos e nos brutalizar de forma tão violenta já vem de um hábito. Fazem-nos isso desde tenra idade”, nota o activista, realçando que nada tem contra os agentes.
“Nós vemos a polícia como um órgão que nos protege, que nos deve defender. O que me indigna não é haver um ou 10 polícias maus. É que nem os bons se prontificam a combater isso, e se protegem. Há aqui uma inversão de valores”.
Crítico, desde logo de si próprio, Bruno Furtado partilha, nesta conversa com Georgina Angélica e Paula Cardoso, os processos de desumanização que se vivem nas cadeias e fora delas.
“Existe uma espécie de negação patológica [em Portugal]. Temos cidades, bairros e ruas de ascendência árabe e africana. E agora, como se estivéssemos numa crise de identidade, dizemos: não temos nada a ver com vocês”.





