Novo episódio: Maria e Mariana Gil (parte 1)
Há um projeto secular do anticiganismo, bem impresso na história em Portugal.
Mãe e filha, Maria e Mariana Gil são as convidadas deste episódio de O Tal Podcast, para ouvir em duas partes. Nesta primeira metade da conversa, Georgina Angélica e Paula Cardoso percorrem os afetos familiares, indissociáveis de uma herança coletiva de desafetos.
“Há um projeto secular do anticiganismo, bem impresso na história em Portugal. Tanto que os nossos filhos, quando estão na escola, têm que se editar. Têm que entrar deixando a sua identidade para trás, porque não há nada nos livros escolares que diga: vocês existem”.
O diagnóstico, aponta Maria, agrava-se num emaranhado de preconceitos que forçam destinos de luta e resiliência.
“É muito cansativo educar os nossos filhos para uma militância permanente. Educá-los sobre um estado constante de vigilância é de uma violência enorme”.
Antes do nascimento de Mariana, há 20 anos, Maria já educava António, Salvador e Vicente, experiência que a obrigou a calibrar perspetivas, e a reconhecer na escola um lugar de confrontos.
A experiência é partilhada pela filha única, perentória na autodescrição: “Atualmente, a minha simples apresentação torna-se um ato de resistência: sou Mariana, cigana, afrodescendente e estudante do Ensino Superior em Portugal”.
Desde cedo confrontada com o peso das características que marcam a sua identidade, a mais nova dos Gil recorda quão “perverso” pode ser o sistema de ensino.
“No nono ano, antes do Covid-19, tinha um colega racista, que fazia afirmações extremamente perigosas. Tive a infelicidade de, no calor de uma discussão, em que ele se dirigia a mim com extrema violência, o chamar de nazi”, conta, sem perder de vista o desfecho. “No final do período, tive um valor retirado da nota e o aluno racista não teve nenhuma repreensão. Nem tentaram perceber a motivação daquela minha palavra”.
Antes desse embate, a hoje estudante de Ciências da Comunicação recorda o primeiro confronto com os enviesamentos curriculares.
“Fui a primeira pessoa a aprender a ler na minha turma, e a primeira vez que abri um dicionário, das primeiras palavras que fui procurar foi cigano. O que lá encontrei não foi nada bom”.
A consciência da discriminação e da exclusão não demoraram a forjar um forte compromisso ativista, extensivo ao universo da moda, que navega criticamente.
“Porquê é que numa menina branca um coque bastante liso e umas argolas douradas é clean e chic, mas numa menina cigana, negra, indiana já é um estilo marginal? Comecei-me a questionar”, adianta Mariana, criadora da “Statement Magazine”, projeto académico que define como “disruptivo”.
O engenho criativo e a assinatura política, reconhecida pelos pares, evidencia-se em casa desde a infância.
“A Mariana tem uma capacidade imensa, de me obrigar a reorganizar enquanto pensamento. Ela consegue fazer essa reorganização não para mim, não por mim, mas comigo. Isso tem sido incrível, porque tem-me trazido outros pontos de consciência”.
Ao reconhecimento materno, a estudante universitária responde com reconhecimento filial. “Eu e a minha mãe estivemos ligadas durante nove meses por um cordão umbilical, e depois a ligação manteve-se via Bluetooth. Somos dois dispositivos que não funcionam um sem o outro”.
Os firmes laços familiares expressam-se também numa campanha fraterna no mínimo original: “Os meus irmãos têm um autocolante no telemóvel a dizer: Marianinha for President [Marianinha para Presidente]”.
Ouço aqui a primeira parte deste episódio, que continua na próxima semana.





