Garimpei com minúcia, enquanto directora da edição online de um jornal, o território das caixas de comentários que têm envenenado discussões nas redes sociais, mas que, no mercado editorial angolano em que me encontrava, me ofereciam inúmeros diamantes de digestão e reflexão editorial.
Foi a partir desse exercício que, por exemplo, prolonguei em novos ângulos de abordagem – até aí pontos cegos para mim – temas sobre os quais já me tinha debruçado. Ao mesmo tempo, descobri fenómenos que me estavam a passar ao lado, fonte de inspiração para reportagens e entrevistas.
Tenho matutado mais e mais sobre essa experiência, iniciada há uma década entre publicações do Novo Jornal, e avivada agora à medida que acompanho as reacções aos posts que anunciam, a cada semana, um novo episódio d’ O Tal Podcast.
Como pessoa que valoriza quem expressa ideias de modo estruturado, consistente e construtivo, e que está genuinamente interessada em amadurecer e robustecer pensamento – e, por isso mesmo, aberta para rever perspectivas –, considero estimulante peneirar a horda de comentários de escárnio e maldizer em busca de opiniões que desafiam as minhas convicções e me espicaçam para novas reflexões.
Pelo mesmo motivo, insisto na leitura de cronistas com quem discordo profundamente – ao ponto da indignação – porque tendo a construir, a partir daquilo que escrevem, novas frentes para a minha argumentação. Não numa base reactiva, mas antes propositiva.
Tudo isso requer práticas que me parecem estar em extinção: respeito e curiosidade pela outra pessoa; disponibilidade para desarrumar as próprias ‘caixas’; e implementação de uma velha lição: “Antes de responderes, lembra-te de ler com toda a atenção o enunciado do teste”.
No limite, bastaria seguir esta última recomendação para evitar os choques em cadeia a que assistimos nas redes sociais.
Longe disso, acelera-se de tal forma as reacções e comentários a tudo e a todos que, volta e meia, dou por mim a escrutinar os meus textos à caça de um qualquer desvio de escrita que possa sustentar leituras e interpretações tão dissonantes do conteúdo partilhado.
Procuro, e tudo o que encontro é uma espécie de sociopatia digital, em que um ruidoso grupo de internautas não só lê no que está publicado aquilo que quer e bem entende – atacando, descontextualizando e adulterando mensagens –, como nega aos outros o direito à sua opinião e experiência de vida, sempre que as mesmas não confirmem as suas próprias opiniões e vivências.
Comprovei, recentemente, de forma mais pessoal, essa vertigem alucinante do online.
Em resposta à pergunta “Qual o seu maior arrependimento?”, que integra o “Questionário pós-Proustiano” do Público, afirmo: “Não vejo nada de útil no arrependimento, porque o associo a julgamento – auto-infligido ou alheio –, e opto por me libertar disso. Escolho aceitar, todos os dias, as minhas decisões e viver o melhor que sei e posso com elas”.
Destas palavras, houve quem tivesse retirado “a minha pobreza de espírito”, e concluído que não reconheço os meus erros; não faltou quem me comparasse a Trump, por estar “cheia de certezas”; e, qual cereja no topo do bolo, também me calhou em sorte o rótulo de “completamente fútil”.
Enquanto exploro o que sobre mim se diz – algo incrédula e inquieta –, assalta-me a curiosidade de espreitar como andam as caixas de comentários no território que comecei por garimpar. Noto, a partir do fluxo da última semana de publicações, que os leitores do Novo Jornal continuam a comentar as notícias, e ocorre-me que, por cá, talvez tenhamos demasiados leitores interessados não em comentar, mas em escrever e reescrever notícias. Cada um intoxicado pela sua bolha de verdades.