É uma clássica história lisboeta, com uma curta deriva geopolítica: centro da cidade, uma das infindáveis zonas recentemente requalificadas da perene condição de abandono ao dinamismo plástico do comércio local e dos pólos de inovação jovem. Era uma praça suja, fica um jardim vazio, era um susto, fica um quiosque. Debaixo da calçada, um parque de estacionamento.
Há algures no espaço infinito das possibilidades literárias toda uma série à espera de ser escrita sobre o secreto e inesperado mundo dos parques de estacionamento subterrâneos em Lisboa: o ticket ou a via verde, a leitura óptica, os lugares de empresa sempre reservados no primeiro piso, o serviço de lavagem manual ao som crescente do funk, a curva demasiado apertada para o andar de baixo, certamente mais vazio. Até lá, uma espécie de piloto, então: era Agosto de 2023, na zona.
O Rolls-Royce estava estacionado na fila da direita do piso -2, no último lugar encostado à parede. Daqueles modelos neoclássicos, inimitáveis e impossíveis de disfarçar - mesmo com a espessa camada de pó que cobria o tejadilho, o capô, as portas e as rodas. Uma poeira que não mente. Uniforme e quase macia. Impossível não reparar na matrícula ucraniana.
Destoava na manhã de Verão subterrânea este veículo intocado - fazia todo o sentido na paisagem do mundo.
A curiosidade e a tentação da fotografia são temperadas pelo silêncio das câmaras de vigilância, pelo conhecimento da história de Hollywood e do percurso-clichê entre a intromissão inocente e o envolvimento infeliz em tramas de espiões. Ninguém gosta de acordar com o cano frio de uma automática na almofada. Olhas de longe, durante uns bons minutos.
Que mensalidade, que contrato? Que cobrança, e com que frequência é possível armazenar assim, um motor assim, durante uma guerra? Que retro. Lisboa sempre alojou conspirações improváveis durante os grandes conflitos do século passado, não seria de estranhar a continuação. Imaginas as linhas oligárquicas entre Kyiv e as avenidas novas, os desvios necessários para conduzir o Rolls até este seu humilde esconderijo, ou albergue. Que sinal aguarda?
A última vez que o vi foi em Dezembro de 2024, ainda imóvel. O pó estava agora mais sujo, mais escuro e desnivelado, como se evidenciando uma desgostosa perda de protagonismo. Imponente ainda, carregado de tempo mas ao mesmo tempo impassível e alheio à multiplicação das armas desde Fevereiro de 2022.
A descentralização da morte e da mentira, os genocídios, os protestos e as lágrimas não perturbam a acumulação de partículas no piso-2. Longe da luz do dia, que objectos aguardam pacientemente pelas tréguas, o cessar-fogo?