Onde fica Marte? Fui à boleia do Amor de Resistência
Ao viajar para Marte detenho-me sobre isso: sobre a capacidade de sermos livres na opressão
Faço o check-in com uma certa angústia de perda, consciente de que embarco numa viagem de 1h42 minutos plena de vida, mas ao mesmo tempo dilacerada pela morte.
O documentário “Going to Mars: The Nikki Giovanni Project” – em português, “Indo para Marte: O projecto Nikki Giovanni” – é o meu destino, para o qual sou guiada a partir das lentes visionárias e revolucionárias de Michèle Stephenson e Joe Brewster.
Cineastas com múltiplas distinções – numa galeria onde se incluem o Grande Prémio do Júri no Sundance, o Emmy de Mérito Excepcional em Documentário, ou a Melhor Curta em Documentário no Tribeca –, Michèle e Joe são, mais do que destacados realizadores de documentários, propulsores de realidades ainda por desocultar e visibilizar.
Por exemplo, já vos ocorreu que o hip-hop deve o seu ritmo às brincadeiras de meninas negras? Em concreto, àqueles jogos de mãos que, acompanhados de cantilenas, marcaram gerações de crianças?
A etnomusicóloga Kyra D. Gaunt escreveu um livro em que estabelece essa ligação; vários jornais americanos publicaram artigos sobre a obra; mas foi através da arte do storytelling, projectada no grande ecrã sob a assinatura de Michèle e Joe – creditada em “Black Girls Play” – que esse olhar cruzou a minha realidade.
Aconteceu-me “Indo para Marte”, para onde segui à boleia da vida e poesia de Nikki Giovanni, eternizada não apenas pelo tanto que escreveu e rompeu em 81 anos de história, mas também pelo quanto de si nos deixou nesse documentário.
O aclamado filme foi exibido pela primeira vez em Lisboa na semana passada, guiando-nos ao encontro de um universo por muitos ainda desconhecido: feminino, negro, sobre-humano e extraterreno.
“Eles lixaram-nos [com F grande]. E, pusessem eles o que fosse dentro de nós, nos aguentávamos, dávamos à luz, depois dávamos-lhe um nome e amávamo-lo. Porque é que não haveríamos de fazer isso em Marte? Porque é que não o faríamos em Júpiter? Porque é que essa mesma energia, esse mesmo Amor que nos trouxe até aqui e nos ajudou a tornar este lugar um lugar potencialmente fantástico, não funcionaria?”.
O poder de resistir e sobreviver à violência – inclusivamente de violações sexuais – com a potência do Amor, demonstrado por séculos de existência negra sobressai nas palavras de Nikki, imortalizadas em “Going to Mars: The Nikki Giovanni Project”.
“Temos uma viagem espacial no nosso sangue, porque viemos do conhecido para o desconhecido, através de um desconhecido”, reitera a poeta, incansável no reconhecimento que é também auto-conhecimento: “Se alguém consegue encontrar o que existe na escuridão, esse alguém são as mulheres negras”.
Muito além das palavras de devoção, o voo na companhia de Nikki guia-nos por actos de auto-reparação.
“Eu escolho a felicidade. Recuso-me a sentir-me infeliz por algo que não posso mudar”.
Ao viajar para Marte detenho-me sobre isso: sobre a capacidade de sermos livres na opressão, e também sobre como, desde tempos imemoriais, pessoas negras expressaram humanidade diante da sua desumanização; ou sobre o poder partilhado de construirmos comunidades de pertença para combater adversidades.
Tudo sem perder a consciência da nossa bagagem humana, amplamente traduzida na poesia de Nikki. “Os poetas podem ter esperança. Nós temos permissão para apelar à condição humana. Temos permissão para recordar às pessoas que o único esforço que vale a pena é outro ser humano”.