Era o ócio emancipado e o desemprego crónico. A automatização robótica do sacrifício e a dívida humana, classista e permanente. Era o regresso do século dezanove e das duas cidades de Dickens - transformadas em símbolo desconfortável do paradoxo contemporâneo em que nos movemos.
Esta dança esquizóide, algures entre a valsa e o kuduro, parece ritmada de acordo com as mesmas divisões internas que observamos ultimamente nas nações do mundo e nas suas identidades pré-fabricadas: um salão de baile cortado ao meio e em que cada um ouve uma playlist personalizada e patriota.
Há, aparentemente, duas hipóteses para a coreografia seguinte: o software inteligente vai estar tão integrado na infraestrutura do sistema global que qualquer colarinho branco deve temer pela sobrevivência - e/ou - esta nova revolução industrial inaugura, finalmente, uma era de abundância cujos limites são apenas o céu (ou as nuvens), a criatividade individual, e a iniciativa privada.
A realidade é obviamente mais complexa do que um discurso de campanha ou um plano de marketing. Vale a pena considerar duas outras conjecturas.
A primeira, avançada pelo sempre atento Dror Poleg, imagina um cenário em que o custo energético da inteligência artificial é de tal ordem que os humanos regressarão às tarefas mundanas e repetitivas - deixando para os suaves robots o trabalho realmente valioso e original, a inovação. Surpresa: o que nos aguarda não é a esperada emancipação laboral, mas uma espécie de outsourcing de luxo. Neste panorama, a fuga para os trabalhos manuais é ainda mais urgente e insultuosa.
A segunda, menos exuberante e talvez mais provável, decorre logicamente da necessidade constante de novos dados para alimentar e fortalecer o exoesqueleto tecnológico do planeta. A simulação, em tempo real, exige uma conduta igualmente actualizada de todo o tipo de detalhes menores e quotidianos que ainda escapam aos sistemas digitais actuais, mas que contêm o sumo verdadeiro do que chamamos a realidade. O suor, o pesar, o aumento repentino do ritmo cardíaco porque nos apaixonamos. A zanga e o orgulho.
Já esgotámos a internet e as bibliotecas. Os sensores urbanos e os satélites fornecem muita desta observação, mas o lento e desordenado progredir dos dias resiste ainda - invisível e imensurável - à quantificação estatística dos modelos da previsão e da publicidade.
Sem surpresas: o futuro do trabalho será - não só mas também - definido por uma fórmula antiga e conhecida por todos os que atravessam a fronteira da lei, das migrações e do crime. Um castigo democrático, acessível, pago sem cerimónias nem elogios.
O tempo livre dos humanos será proporcional à sua disponibilidade para a vigilância.