Permissão para Merecer
O merecimento está profundamente ligado ao ato de nos permitirmos viver.
Nos últimos tempos, tenho sido levada a refletir sobre a palavra merecimento e a revisitar momentos marcantes da minha jornada. Lembrei-me de uma época em que tive de me confrontar com a mulher em que me tinha tornado. Foi um período em que a vida me forçou a encarar as minhas escolhas, as minhas feridas e os caminhos que tinha percorrido até então. Nessa altura, alguém, com muita sensibilidade, sugeriu-me a leitura do livro de Clarissa Pinkola Estés, "Mulheres que Correm com os Lobos".
Esse livro abriu uma porta que eu nem sabia que estava fechada. Falou-me de algo que a minha alma já sabia, mas que o meu coração tinha esquecido: o meu direito de existir plenamente, de viver em harmonia com a minha natureza selvagem e intuitiva e, acima de tudo, de merecer tudo isso. A palavra merecimento começou a ganhar um novo significado para mim. Já não se tratava de conquistas externas ou de provar algo ao mundo ou aos outros. Tratava-se de reconhecer o valor intrínseco de quem sou, de quem todas nós somos, simplesmente por existirmos.
Mas, enquanto mulher negra, percebo que o caminho para aceitar esse merecimento pode ser ainda mais desafiador. Carregar as expectativas, as histórias não contadas e as narrativas de resistência da minha ancestralidade exige uma força que muitas vezes é invisível para os outros. Foi nessa jornada que um outro livro me acompanhou: "Mulher, Raça e Classe", de Angela Davis. Esta obra ajudou-me a entender que o merecimento não é apenas sobre o individual, mas também sobre lutar contra as estruturas que tentam negar-nos a plenitude de sermos quem somos.
Refletir sobre o merecimento levou-me a revisitar histórias e crenças que carregava como verdades absolutas. Quantas vezes me limitei por não acreditar que era digna de algo maior? Quantas vezes silenciei a minha voz ou diminui o meu brilho, acreditando que não era suficiente? "Mulheres que Correm com os Lobos" lembrou-me que estas histórias, embora comuns, não precisam de definir quem somos ou quem podemos ser. E Angela Davis fez-me perceber que o ato de merecer está profundamente ligado à luta por espaços de pertença e igualdade.
O merecimento está profundamente ligado ao ato de nos permitirmos viver. Não como espectadoras, mas como protagonistas da nossa jornada. Trata-se de nos darmos a permissão para cair e levantar, para sentir e sonhar, para ser e transformar. É sobre abraçar tanto as nossas sombras como a nossa luz, sabendo que ambas fazem parte do todo que somos.
Ler estes livros foi um despertar. Um chamado para honrar a minha história, as minhas raízes e a minha essência. Hoje, quando penso em merecimento, já não vejo um prémio a ser conquistado, mas sim um estado de ser que floresce quando aceitamos, com amor e coragem, quem realmente somos. Como Sofia Medina Andrade partilhou no sétimo episódio desta quarta temporada, atualmente no ar, reconhecer o merecimento como um processo em construção é também um ato de autocuidado e coragem. E tu, tens-te permitido merecer?