Portas que só se abrem por dentro
Precisamos de lembrar que não há ferramenta externa que substitua o trabalho interno.
Na última quinta-feira, gravámos uma nova conversa para o podcast. Como tantas vezes acontece, começámos num tema e fomos parar a outro. Quem já nos acompanha há algum tempo sabe que é assim: deixamos que as conversas respirem, sigam caminho, nos surpreendam. E foi exatamente isso que aconteceu — mais uma vez.
Sem revelar ainda quem é o convidado — porque parte da magia está também nesse suspense —, quero partilhar um momento da conversa que me ficou a ecoar. Falávamos sobre vários processos da vida, de autoconhecimento, de atravessar as próprias sombras e aprender a estar com o que dói, quando perguntei sobre o uso de psicadélicos. Mais concretamente, da ayahuasca.
Antes da gravação, na minha habitual pesquisa sobre o convidado, descobri que ele já tinha tido uma experiência com ayahuasca. E, curiosa como sou — e como gosto de estar inteira nas conversas que tenho —, quis perceber mais. Não por voyeurismo espiritual, nem pela tendência que, às vezes, vejo de romantizar tudo o que vem com o selo de “alternativo” ou “ancestral”. Mas porque acredito que precisamos de falar destas coisas com mais abertura, mais verdade, mais profundidade.
Então perguntei: como tinha sido essa experiência? Que consciência tinha surgido a partir daí? Que portas se abriram?
A resposta foi honesta e madura. O convidado partilhou que, acima de tudo, é essencial que cada pessoa reúna muita informação antes de decidir avançar. Que se informe a sério. Que questione. Que entenda os riscos, os contextos, as origens, as intenções. Disse também que a experiência dele foi só dele — e que cada pessoa viverá um processo completamente diferente. Que a ayahuasca, ou qualquer outro psicadélico usado com esse propósito, não deve ser encarado como uma solução rápida para os desafios da vida. Não é um atalho, uma resposta pronta, nem um remédio milagroso.
O que pode ser, se houver espaço interno, é uma porta. E essa porta pode levar a outras portas. Mas só se estivermos prontos e prontas para as abrir. Com consciência. Com humildade. Com coragem.
Fiquei a pensar nisto nos dias seguintes.
Vivemos tempos em que muitos procuram respostas fora. Nas terapias, nos retiros, nos gurus, nas plantas, nos algoritmos. Há uma fome de sentido, de pertença, de cura. E isso é legítimo. Mas precisamos de lembrar que não há ferramenta externa que substitua o trabalho interno. Que não há substância que nos faça saltar etapas do nosso próprio caminho.
E talvez seja por isso que me comovem tanto as conversas que se desviam do guião. Porque é nesse desvio que, por vezes, encontramos o que realmente importa.
Naquele momento da conversa, não era sobre a ayahuasca que estávamos a falar — ou, pelo menos, não só. Estávamos a falar daquilo que todos, em algum ponto, tentamos: encontrar uma forma de estar mais próximos de nós mesmos. E de fazer as pazes com o que não entendemos logo à primeira. Ou à segunda.
Há um certo desconforto em reconhecer que nem tudo se resolve com uma decisão, uma sessão, uma cerimónia. Que há dores que voltam, dúvidas que não se calam, partes de nós que se escondem mesmo quando achamos que já as iluminámos. Mas talvez seja esse o ponto. Parar de procurar o fim da linha, a resposta definitiva, a cura total — e começar a escutar, com mais honestidade, o que ainda não sabemos.
As portas de que falávamos — aquelas que só se abrem por dentro — nem sempre têm alarme, nem sinal luminoso. Às vezes, só damos por elas quando encostamos o ombro, quando cansamos de dar voltas, quando já não conseguimos continuar a fugir. Outras vezes, tropeçamos nelas sem saber bem como.
E sim, há lugares onde só conseguimos chegar com ajuda. Mas é preciso saber distinguir entre ajuda e dependência. Entre ferramenta e muleta. Entre caminho e fuga disfarçada de caminho.
No fim, o que mais me ficou foi isso: a importância de não delegar o que só nós podemos atravessar. A responsabilidade, sim, mas também o privilégio de podermos olhar para dentro — com o tempo que for preciso, com a clareza que tivermos, com a dúvida como companhia.
É essa a beleza das conversas verdadeiras. Levam-nos a lugares inesperados. E, às vezes, é aí que nos lembramos: o que procuramos fora pode ser apenas o espelho do que já está — mesmo que em silêncio — a germinar por dentro.