Quão malditas sois vós (somos nós), entre as mulheres?
Aqui emperradas, como romper com esta programação de feminismos esvaziados de empatia e humanidade?
Conto ali mais de 100 mulheres. Todas têm algum elo entre si, pessoal ou profissional, mas desconfio que a maioria nunca se tenha cruzado na vida para além de meetups, summits, gatherings, conferences e outros "something else".
Recém-chegada ao grupo, onde não conheço mais do que meia-dúzia de caras, deixo-me convencer por três aspectos, que me fazem quebrar uma crescente e crónica intolerância a comunidades WhatsApp.
Em primeiro lugar, incentivou-me saber que a força motriz do grupo é feminista. Ao mesmo tempo, entusiasmou-me perceber que, no meio de alguns desabafos e trivialidades de género, circulam informações e reflexões úteis na nossa luta pela igualdade, indissociável de uma maior independência financeira. Finalmente, como pessoa movida a muita curiosidade, e apaixonada por cruzar realidades, não resisti ao exercício de furar uma “bolha” à qual associo muitos privilégios por interiorizar.
Vejo-me ali à experiência, e, enquanto por lá ando, recordo o que me afastou dos colectivos feministas que conheci mais de perto: os julgamentos implacáveis entre mulheres.
Quão inconscientes ainda estamos das nossas lentes e programações patriarcais?
Porque é que ver uma mulher em cima de um ringue de boxe, calças justas, top, barriga ao léu e placa em riste a anunciar rounds de combate, suscita um desdenhoso: “Credoooo. Ainda existem mulheres a fazer isto!”.
Que histórias interiorizamos e reproduzimos sobre nós próprias que nos impedem de ver nessa imagem mais do que “humilhação a troco de dinheiro”?
Sem mais informação do que uma imagem, porque é que não equacionamos outras possibilidades?
Porque que é que não nos despimos da ideia de que menos roupa tem de significar mais insegurança, necessidade de dar nas vistas em busca de validação, e um convite sexual?
Porque é que, significando, isso é um problema nosso?
Porque é que rotulamos de retrocesso, a opção de algumas mulheres deixarem de trabalhar, para cuidar da família e da casa?
Dizem-nos as notícias vindas da Suécia que o país assiste a uma tendência disruptiva nesse sentido: a afirmação das soft girls. Soube-o através desse grupo WhatsApp, em que, uma vez mais, a partilha é feita em tom de julgamento.
“É terrível. Isto não faz sentido nenhum. Hoje, mais do que nunca, existem condições para que mulheres e homens trabalhem lado a lado em tudo.”
As condições até poderão existir – ainda que não em paridade –, mas quem tem o direito de impor modos de ser – femininos ou quaisquer que sejam – a outras pessoas?
Ao contrário do que algumas correntes feministas parecem defender – de que há uma universalidade feminina –, pelo menos desde Sojourner Truth que essa premissa é contestada.
Mulher negra, que nasceu na condição de escravizada, Sojourner é autora de um discurso histórico, intitulado “E não sou eu mulher?”, com o qual evidenciou que a luta das feministas universais – leia-se brancas –excluía as suas circunstâncias femininas.
O desencontro persiste ainda hoje, conforme denunciou, nos últimos dias, a actriz e activista Maria Gil. Mulher portuguesa e cigana, Maria apercebeu-se da utilização indevida do seu nome e discurso num livro de recorte feminista.
Apesar de ter existido uma troca de mensagens entre a actriz e a autora da obra – intitulada “Isso Não é para Meninas 40 Mulheres portuguesas que ousaram ir aonde lhes disseram que não podiam" – Maria garante que não aceitou qualquer publicação, nem respondeu às questões que lhe foram enviadas por e-mail.
“Não respondi às perguntas, não fui informada sequer de que o livro iria sair e desconhecia a manobra publicitária que inclui o meu nome. Não aceito este uso. A dignificação da mulher cigana começa por rejeitar este género de parasitagem”.
O argumento não parece, contudo, ter sensibilizado a autora, Mónica de Menezes, que confrontada com o protesto explicou “ter recorrido a outras entrevistas”.
“É isto um trabalho que pretende dignificar as Mulheres?”, pergunta Maria Gil, na nota de repúdio partilhada nas redes sociais, onde deixa também uma provocação. “Se é branca ‘feminista’ e padece de síndrome de universalismo, dê sangue. Em vez de dar ‘voz’ a mulheres ciganas sem o seu consentimento”.
Aqui emperradas, como romper com esta programação de feminismos esvaziados de empatia e humanidade?
Proponho, para começar, que respeitemos o direito de cada um a viver segundo as suas escolhas, por mais que estejam nos antípodas das nossas, e desde que daí não resultem violações dos direitos de outras pessoas. Parece simples, porque é.