Começou por me telefonar. Explicou que viu a minha intervenção no programa televisivo Jantar Indiscreto, e que percebeu, automaticamente, que tinha de falar comigo. Depois guiou-me pelo processo: pediu o meu número à RTP, esbarrou em impossibilidades, insistiu o quanto pôde, e acabou a vasculhar contactos até me encontrar do outro lado da linha.
Aconteceu há uns bons três anos, e deixou-me, logo às primeiras palavras, de alertas ligados. “Quem é esta pessoa? O que é que quer de mim? Porque é que se deu a este trabalho para me encontrar?”.
Apesar das minhas múltiplas desconfianças, acentuadas por ter, do outro lado, um homem branco e privilegiado – retrato que o próprio facilitou na apresentação –, acabámos por ficar cerca de 1h30 ao telefone. Dois perfeitos desconhecidos à conversa.
Falámos sobre Moçambique, o nosso país de nascimento, e imaginei que a conversa avançaria para discussões raciais, a partir do tema do programa que nos aproximou.
Enganei-me redondamente! A pessoa do outro lado queria “apenas” saber mais da minha história, conhecer melhor o meu pensamento sobre a vida.
Lembro-me de concordarmos, de discordarmos, mas, acima de tudo, de nos entendermos.
Desligámos com planos de uma conversa presencial.
Estávamos em Novembro de 2021, registo que recupero a partir da troca de mensagens que se seguiu, e ficámos dois anos sem qualquer ligação.
Por isso quando, no ano passado, o telefone me notificou de nova mensagem, o reconhecimento – apesar de o número estar gravado – não foi imediato. “Quem é esta pessoa?”. O histórico que, felizmente, não tinha apagado, deu-me a resposta e, com ela, veio novamente a televisão.
Desta vez, foi o Rumos a dar mote para o contacto, que ficou por estas palavras: “Estou nos Açores e acabei de ver um programa teu. Muito bom. Parabéns”.
Continuei intrigada com a pessoa, que talvez seja uma outra forma de dizer “desconfiada”.
Voltei a googlá-la, tal como tinha feito dois anos antes, e mantive a estranheza. “O que é que quer de mim?”.
Vivemos mais um ano sem uma única interacção e, há duas semanas, combinámos, finalmente, um encontro presencial.
Aconteceu na última sexta-feira, 8, e tinha como ponto de encontro o que me foi referenciado como um escritório.
“Proponho depois das 15h, sem limite de tempo”, escreveu-me.
Mais curiosa do que desconfiada, lá apareci e, em vez de um escritório de configuração clássica, encontrei um apartamento mais habitável do que muitos apartamentos habitados que conheço.
Poderia ter ficado desconfortável, mas estava completamente à vontade, e, acima de tudo, senti-me segura. Nem por isso deixei de desconfiar: “Isto tudo é muito estranho. Onde é que me vim meter?”.
Acabámos a conversar por quase três horas – e mais falaríamos não fosse um compromisso que já tinha para jantar –, marcadas por um invulgar temporizador entre desconhecidos: a confiança.
“Como não nos conhecemos, só posso confiar inteiramente em ti”, disse ele ao início, desarrumando-me.
Fiquei a matutar nisso: confiar antes de desconfiar será o antídoto de que precisamos para desenvenenar as nossas relações humanas, por estes dias intoxicadas de muros de afastamento, em vez de pontes de entendimento?
Porque é que nos ensinam a desconfiar uns dos outros, a partir da ideia de “desconhecido”?
Convencemo-nos de que o fazemos para nos protegermos – e sobretudo às crianças – de pessoas más e, com isso, alimentamos a ideia de que o mundo é um lugar fundamentalmente perigoso.
Vivemos de pé atrás, e isso impede-nos de avançar na nossa humanidade.
Acreditamos que as desilusões, crueldades, traições, traumas, deslealdades e outras fealdades que vivemos na pele – ou que testemunhamos – justificam essa cultura de desconfiança. Por detrás dela cresce a ideia de que o ser humano é intrinsecamente mau. Somos mesmo? Ou são só “os outros”?
Seremos capazes de aprender a confiar antes de desconfiar? Como quebrar padrões pré-estabelecidos de desconfiança?
Ando a pensar nisso, ao mesmo tempo que ando a conversar mais e mais com desconhecidos. Experimentem!