Regressar da morte
A morte do meu pai marca um antes e depois na minha relação com a perda. Até 19 de Janeiro de 2024, data do fim dos seus 74 anos de vida, a perda significava apenas ausência.
A tristeza, o choro, a angústia, e às vezes também a culpa e os remorsos por situações não resolvidas ou mal resolvidas, estavam, para mim, enraizadas no desaparecimento da pessoa. Um efeito da impossibilidade de novos encontros, de entendimentos por fazer, que instalaria uma agonizante sensação de carência. Falta alguém. Falta-nos alguém.
Ainda assim, à distância de nove meses da morte mais significativa que já vivi – e sim, é de viver a morte que vos falo, algo para além de sentir –, encontro nesse processo mais presença (vida) do que ausência (morte).
Talvez por perceber que em tudo o que o meu pai foi, também está parte do que sou. Um dia conto escrever sobre isso.
Hoje quero falar sobre outras presenças. Sobre outros pais e outras famílias que vivemos como se fossem nossos.
Acompanham-nos nas ruas, manifestação após manifestação, em protestos que se repetem ao ritmo de impunidades estruturais.
Pergunto-me: como se regressa à vida depois da morte de quem amamos, quando sabemos que foi morto por alguém que nos deveria proteger? Como fazê-lo quando essa tragédia, em vez de gerar comoção colectiva e amplo debate e reflexão nacionais, produz narrativas de justificação tão desesperadas que assentam em mentiras?
As perguntas não me largam enquanto cumpro o que vejo como um dever de humanização das nossas vidas. Diante de Mónica, viúva de Odair Moniz, cabo-verdiano de 43 anos morto por um agente da PSP no passado dia 21, questiono-me como se volta a ser humano depois de um trauma desses.
Como lidar com a revolta e com o sentimento de injustiça? Como acreditar num sistema que continua a criminalizar pessoas negras, e a ilibar polícias que atiram a matar quando o corpo suspeito é negro? Como confiar na justiça que condena pessoas por se defenderem de agressões racistas, como aconteceu com Cláudia Simões?
Não foram essas as questões que coloquei a Mónica, quando conversámos, nem sequer são as únicas que importa levantar. Mas são fundamentais para o processo de humanização que defendo, e que iniciei entre leituras e sessões de terapia.
Enquanto vivo a morte de Odair Moniz, como antes vivi, entre outras, a de Danijoy Pontes, Bruno Candé ou Luís Giovanni, regresso a bell hooks, e a um texto que escrevi a partir do seu ensaio “Living to Love” (Vivendo para amar).
Começo por uma série de reconhecimentos.
Tivemos de libertar as nossas vidas das correntes. Tivemos de libertar as nossas terras das invasões. Tivemos e ainda temos de lutar pelo nosso reconhecimento como cidadãos de pleno direito, com acesso equitativo a direitos elementares, como saúde, habitação, trabalho e educação. Tivemos e ainda temos de explicar por que razão é necessário olhar para o passado para perceber que a estrutura de poder vigente perpetua a criminalização, inferiorização e exclusão dos negros. Fizemo-lo e continuamos a fazê-lo com a urgência que se impõe nas questões de vida e de morte. Fizemo-lo e continuamos a fazê-lo por uma questão de sobrevivência.
Nesse caminho de tantas disputas, em que antes como agora subsiste a necessidade de demonstrar que as vidas negras importam, além das perdas materiais é fundamental analisar as perdas emocionais, avisou bell hooks, num alerta que subscrevo, e que é indissociável da existência d’ O Tal Podcast. Justamente, “o espaço onde cabem todas as vidas, emocionalmente ligadas por experiências de provação e histórias de humanização”.
Se “somos um povo ferido”, conforme escreveu a autora e activista afro-americana – e, para mim, é inegável que somos – será possível curar os ferimentos num sistema que nos continua a ferir, demasiadas vezes de morte?
Acredito que não. Acredito que a cura só é possível dentro das nossas comunidades de pertença, a partir da capacidade de nos amarmos, de amarmos a nossa negritude e tudo o que representa. Sei que soa a ingénuo, mas, de novo, regresso a hooks.
“Numa sociedade onde prevalece a supremacia branca, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram a nossa habilidade de querer e amar”, alertou a autora.
Na obra “Olhares Negros”, hooks acrescenta: “Somente o acto e a prática de amar a negritude nos permitirá ir além e abraçar o mundo sem a amargura destrutiva e a raiva colectiva corrente”.
Volto à conversa com a Mónica, e ao amor que partilhou com o seu Dá, presente em cada memória que, num momento de profunda dor, teve a humanidade de partilhar comigo.
“Dizem coisas sem sentido…que encontraram o Dá com uma faca na mão. O meu marido não é um homem de faca. Ele não anda com faca. Tenho a certeza. Ele não tinha nada porque é uma pessoa pacífica, não de guerra”.
Também ela pessoa de paz, é, acima de tudo, amor que gravo com as suas palavras, nova ponte para o ensaio bell hooks. "Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor nas nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível ver o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura”.