O que acontece quando uma criança negra pisa um palco de excelência e, em vez de se encolher, se expande? Foi essa pergunta — não formulada, mas sentida — que me atravessou durante a cerimónia do Prémio Gulbenkian para a Humanidade, na passada quarta-feira.
O prémio foi atribuído à ASOC, uma coligação de organizações ambientais que atua na proteção da Antártida e do Oceano Austral, através de diplomacia ambiental e advocacia científica. Mas, mais do que a distinção, o que me tocou profundamente foi o modo como certos projetos só se tornam verdadeiramente transformadores quando os seus autores compreendem que o propósito é maior do que o próprio nome. Maior do que qualquer ambição pessoal. Projetos com impacto duradouro nascem do reconhecimento de que a urgência da vida — humana, climática, social — exige ação coletiva, visão partilhada e entrega sem reservas.
Foi inevitável pensar no que temos construído n’OTal Podcast. Somos três. Cada um (a) com o seu percurso. Mas partilhamos um propósito comum. E talvez seja isso que torna esta caminhada tão inteira: as nossas diferenças não nos separam — pelo contrário, completam-se. Há, entre nós, uma consciência rara de que não basta ter voz — é preciso usá-la com sentido. É essa sintonia de valores, propósitos e humanidade que nos faz acreditar no que estamos a construir.
Durante a cerimónia, fui sendo atravessada por pensamentos e emoções. Mas houve um momento que me marcou de forma visceral: a atuação da Orquestra Juvenil Geração. Vi crianças e jovens negras a ocupar aquele palco com uma presença luminosa. Vi talento, alegria e confiança. E, ainda que todas as crianças me tenham tocado, confesso que ver aquelas em quem me revejo emocionou-me profundamente. Senti-me a olhar para uma versão mais nova de mim — ou de tantas outras meninas e meninos que, como eu, cresceram a sentir que certos espaços não foram feitos a pensar neles.
Porque não se tratava apenas de música. Tratava-se de presença.
Tratava-se de pertença.
Tratava-se de uma mensagem silenciosa, mas poderosa:
Tu também podes estar aqui.
Sei, como muitos sabem, que há espaços onde, durante demasiado tempo, o acesso foi negado — explícita ou subtilmente. E mesmo quando as portas se abrem, o corpo sente o peso da exclusão passada. O medo de não estar à altura. A dúvida sobre o merecimento. Por isso, ver aquelas crianças ali, naquele palco, naquele auditório, foi mais do que bonito. Foi necessário. Foi reparador.
E a mensagem que me ficou não veio de nenhuma fala formal. Veio desse momento final, em que a música se tornou tradução de algo maior: É possível.
É possível ocupar espaços de excelência.
É possível sentir que se pertence.
É possível ser reconhecido, não como exceção, mas como parte.
E quando uma criança negra sente isso no corpo, tudo muda. Porque o futuro não se constrói com discursos — constrói-se com experiências que dizem: isto também é para ti.