Sim ou não? Se mentires, morres!
De rajada, as perguntas enredam-nos num sufocante e angustiante labirinto
De rajada, as perguntas enredam-nos num sufocante e angustiante labirinto, revelado na ressaca de umas bem auspiciosas núpcias.
“Queres testar os teus sentimentos? Estás preparado para revelar segredos? Será que a tua mulher já te traiu? Amas o teu marido? Ele é uma pessoa violenta? Estás pronta para ser castigada? Queres mesmo saber a verdade? Confias na pessoa que amas? Apostarias a tua vida nisso?”.
À vez, cada um no seu inóspito cubículo, os recém-casados Kate e Jack enfrentam uma estranha forma de tortura: confrontados com o que desconhecem da vida um do outro, são pressionados a pôr à prova as juras de amor trocadas nas cenas iniciais.
Mais de uma década depois de me ter cruzado com essas imagens, no filme “Yes/No: You Lie, You Die” (Sim/Não: Se Mentires, Morres) – também conhecido pelo título “True Love” (Amor de Verdade) –, o argumento permanece bem presente na minha memória. Volto a ele, revisitando o trailer, a partir da espiral de inquietações com que saí do Panteão Nacional no último sábado, dia 11.
Fui sem saber muito bem ao que ia, curiosa sobre o significado de “vigília performativa”, e confiante de que as quatro horas e meia de duração anunciadas implicariam um vira e mexe na audiência, mas sem cortes no fruir da sentença.
Basicamente, imaginei um movimento criativo, porém repetitivo – à semelhança do que acontece com gravações que encontramos em museus – porque, confesso, nunca me passou pela cabeça que o espectáculo se fosse estender das 18h às 22h30.
Enganei-me. Tal como a própria história que o desencadeou, “O Julgamento Pelicot – Tributo a Gisèle Pelicot” – encenado pelo suíço Milo Rau, em colaboração com a dramaturga e activista francesa Servane Dècle – revela-se distintivamente único.
Fiquei-me pelas primeiras duas horas e meia de apresentação, mais desconcertantes do que qualquer uma das notícias que li sobre o caso, e, ao momento tempo, uma via de acesso automático àquelas memórias cinematográficas.
Reconhecendo que a realidade ultrapassa largamente a ficção, o espectáculo-tributo – integrado na programação da BoCA Bienal 2025 – faz-me matutar em como a confiança em alguém que amamos – e até o amor que lhe dedicamos – pode assentar mais em verdades construídas do que em realidades conhecidas.
Causa ou por efeito disso, as palavras de Gisèle Pelicot, pronunciadas no julgamento, não me saem da cabeça: a relação com Dominique Pelicot, com quem foi casada por cinco décadas, sempre se baseou na confiança.
Não estranha por isso que, mesmo diante das provas do crime do ex-marido, pai dos três filhos e avô dos sete netos, tenha começado por duvidar de tudo o que via.
Afinal, como acreditar que, durante uma década, o homem com quem construiu uma família, a drogou até à inconsciência para ser violada por outros homens?
De tão abjecto, o caso torna-se ao mesmo tempo inacreditável e insuportável, e, também por isso, Gisèle fez questão que os vídeos dos abusos fossem abertamente exibidos em tribunal. Uma vontade que, fiquei a saber com o espectáculo, contestou a decisão inicial da Justiça, que pretendia manter as provas do crime escondidas do escrutínio público.
Como se a verdade desconhecida tornasse a realidade menos sórdida e nos protegesse de atrocidades. Pergunto-me, por isso, se estamos preparados para conhecer as verdades que temos do lado, quando abalam aquelas que habitam em nós.
Sim, ou não?