Fui desafiada.
Não de forma brusca, mas com aquele empurrão cúmplice que só uma amiga sabe dar. A Paula, co-host deste podcast, lançou a pergunta: “E se também te inscreveres neste workshop?”, depois de escutar tantas vezes que houve um período da minha vida que o teatro e a representação estavam muito presentes.
A sugestão, simples mas certeira, reacendeu uma parte antiga de mim.
Inscrevi-me num workshop de Preparação para Casting com o Diogo Camões, diretor de casting e um nome sonante no mundo da representação. O que me puxou, confesso, não foi logo a ideia de voltar a representar, mas o facto de haver — aparentemente — uma vertente dedicada a apresentadores. A ironia? Afinal, essa vertente não estava incluída. Ainda assim, senti um clique. Um pequeno “sim” interno. Um talvez...E esse talvez foi suficiente.
A representação é um fio antigo que atravessa a minha vida. Um fio que, durante anos, achei ter cortado com firmeza. Mas não há tesoura que consiga cortar o que está entranhado na alma. E esta experiência veio provar isso.
Na véspera do workshop, o e-mail: um texto para decorar. O coração disparou. A ansiedade apertou como um velho casaco que já não nos serve, mas que, por alguma razão, nunca deitámos fora. A componente de representação era mais séria do que imaginara. E eu? Já não era atriz. A semana estava cheia. As horas, curtas. E eu, duvidosa.
Decorei o texto duas horas antes do workshop. Em cima do joelho. Ou melhor, em cima da coragem. Surpreendentemente, as velhas estratégias voltaram. A memória ativou-se como se tivesse estado à espera deste momento.
Era como se o corpo se lembrasse de ser casa de palavras, de emoções, de outras vidas. No dia seguinte, entrei na AMA — a escola que me acolheu com respeito. Senti-me bem. E ainda assim, ao entrar na sala, dei por mim a reparar: era, muito provavelmente, a mais velha do grupo. E a voz cá dentro — essa que conhece todos os atalhos para me desarmar — começou:
“O que estás aqui a fazer?”
“Isto foi um capítulo antigo.”
“Tens a certeza de que ainda tens lugar aqui?”
Mas há em mim um compromisso com tudo o que abraço. Um pacto com a inteireza. Disse a mim mesma: “Vieste. Estás aqui. Agora vais até ao fim.”
Na turma, reencontrei a Aoani e a Nuna — duas atrizes negras que já conhecia. Foi bonito vê-las ali. Foi bonito vê-las brilhar.
Assisti aos seus exercícios com orgulho — um orgulho quase ancestral.
Quando chegou a minha vez, entreguei-me.
No fim, foram elas que vieram ter comigo, de olhos brilhantes, a perguntar: “Tu representas muito bem. Por que paraste?”
Senti-me vista. Senti-me reconhecida.
Senti-me… de volta.
Contei-lhes a minha história. Como, na minha juventude, as atrizes negras — por mais competentes que fossem — ficavam presas em papéis estereotipados, sempre associados a uma visão limitada do que é ser mulher e negra.
Hoje, há mais portas abertas. Mas o corredor ainda é estreito. Ainda é um caminho cheio de curvas e obstáculos.
No regresso a casa, veio a tristeza. Aquela tristeza doce e cortante de quem reencontra um amor antigo e percebe que ainda há ferida.
Lembrei-me da menina que sonhava ser atriz. Que estudava textos, que subia aos palcos, que se emocionava com cada aplauso.
Mas a vida desviou-me.
A universidade. Os pais receosos. A encenadora que me humilhou. O ator que ultrapassou limites. Os egos esmagadores. A ausência de referências com corpos como o meu.
Tudo isso foi pesando até que…deixei cair.
Tenho dito que estou em paz com essa desistência. Mas será verdade?
E se esta for uma conspiração suave do universo?
Uma espécie de reencontro com aquilo que, afinal, nunca me deixou?
Hoje, com mais de 40 anos, vejo com clareza: a representação deu-me ferramentas preciosas. Ajudou-me a vencer a timidez, a encarar o público, a improvisar perante a vida. Não é só arte. É sobrevivência.
É por isso que acredito tanto no poder transformador das artes na educação — porque sei o quanto me moldaram.
A Aoani e a Nuna insistiram: “Volta. Não desistas.”
E eu sorri.
Um sorriso cheio de história, de dúvidas e de possibilidades.
Há movimentos internos que não pedem palco — apenas escuta. E, por vezes, basta parar e sentir para perceber: há algo em nós que nunca se perdeu.
Hoje, sinto uma gratidão profunda por este podcast estar a abrir novas possibilidades — um espaço onde posso reunir tudo o que sou: criatividade, escuta, experiência e coração. E percebo que o meu propósito é: Estar onde faz sentido. Ser quem faz falta.
Com amor. E com consciência.