Verdade Desconfortável
O reconhecimento de que a diversidade e a inclusão não podem ser meramente simbólicas ou pontuais
Aos 14 anos, começou o sonho de ser atriz. Depois de uma peça escolar, comecei a ser elogiada e incentivada a considerar essa possibilidade, e o meu coração expandia sempre que ouvia esses comentários. Ser atriz, para mim, significava viver múltiplas realidades, diferentes da minha, onde o meu lado sonhador encontraria um lugar seguro para voar sem medo. Esse desejo cresceu ainda mais quando apresentámos a peça no Teatro da Barraca, e, no final, um senhor — um entendido nas artes teatrais — disse-me que eu tinha talento e que devia seguir esse caminho seriamente. Fiquei feliz e cheia de esperança.
Sonhei em continuar, mas quando quis estudar no Chapitô, os meus pais, por precaução, não permitiram. Hoje entendo essa decisão, mas, na altura, senti-me limitada. Senti que queriam que me encaixasse num mundo que, no fundo, sempre teve dificuldade em aceitar-me plenamente. Mais tarde, durante um ensaio num grupo de teatro de que fazia parte, ao expressar a minha admiração por um ator que interpretava Otelo, ouvi da encenadora uma frase que me marcou profundamente: "Para preto, é um grande papel". Essas palavras pesaram sobre mim, fazendo-me sentir do tamanho de uma ervilha, e ali percebi, de forma dolorosa, as barreiras que existiam no país onde nasci e cresci. Mesmo assim, continuei, mas essa frase ficou gravada em mim, tornando a minha luta interna entre sonho e realidade ainda mais difícil.
Olhando para trás, percebo que era uma jovem ingénua a tentar entrar num mundo que pouco ou nada mudava. Hoje, quando vejo peças do Teatro Griot, e acompanho atrizes como Isabél Zuaa e Ana Sofia Martins a desafiarem as narrativas limitadas que nos eram impostas, sinto uma mistura de orgulho e nostalgia. Penso como teria sido, se tivesse nascido mais tarde, se este fosse o meu tempo. No entanto, não carrego frustração; sei que, naquela altura, o mundo das artes em Portugal estava ainda profundamente dominado por uma visão monocromática.
Foi com esses pensamentos que vi o Tribeca Festival Lisboa 2024 acontecer. Um evento com tanto potencial para celebrar a diversidade, mas que, infelizmente, falhou em trazer uma verdadeira representatividade negra. O festival, criado para revitalizar e unir através da arte, perdeu a oportunidade de ser uma plataforma robusta para amplificar as vozes das comunidades racializadas. Apesar da presença de grandes nomes internacionais como Whoopi Goldberg e a participação do Dino D’Santiago, que trouxe discussões importantes sobre inclusão, faltou uma maior visibilidade para atores, cineastas e pensadores negros portugueses ou africanos.
Ao ser organizado por entidades locais como a SIC e a Câmara Municipal de Lisboa, com figuras importantes da cultura como Francisco Pedro Balsemão, Ricardo Araújo Pereira e José Eduardo Agualusa, o festival tinha todas as condições para fazer mais. Era uma oportunidade perfeita para mostrar que Portugal é mais do que uma narrativa única, que é composto por várias histórias, experiências e desafios — e que essas histórias merecem ser contadas.
Este cenário é um exemplo claro do que Mark Manson descreve como "a verdade desconfortável": a necessidade de encarar as realidades difíceis e dolorosas, em vez de as evitar. O reconhecimento de que a diversidade e a inclusão não podem ser meramente simbólicas ou pontuais, mas precisam de ser refletidas de forma consistente em todas as esferas culturais, é uma dessas verdades desconfortáveis.
A presença de Dino D’Santiago, que participou em discussões sobre o poder inclusivo do storytelling, foi um passo importante, mas não suficiente para colmatar a lacuna. Dino, que também foi convidado do nosso podcast na primeira temporada, sempre falou abertamente sobre a necessidade de dar mais espaço às vozes das comunidades negras e racializadas. Porém, apesar de algumas iniciativas, o festival falhou em abraçar plenamente a diversidade que compõe Portugal.
Esta reflexão leva-me de volta à frase que tanto me marcou: "Para preto, é um grande papel". Uma verdade desconfortável que, ainda hoje, se aplica a muitos espaços culturais. A ausência de uma representatividade negra significativa no festival aponta para a necessidade de uma mudança mais profunda. Talvez a solução esteja em criarmos as nossas próprias plataformas. Como disse antes, talvez devamos concentrar a nossa energia em construir algo novo, algo maior, onde as nossas histórias, a nossa multiplicidade e complexidade possam ser mostradas de forma plena e autêntica.
O Tribeca Festival Lisboa poderia ter sido um exemplo de como se faz diversidade de forma genuína, mas, em vez disso, perpetuou as mesmas lacunas. Talvez a verdade desconfortável que devemos aceitar seja a de que cabe a nós criar os nossos próprios espaços, onde possamos ser vistos, ouvidos e celebrados. E só assim, focados nos nossos valores e unidos por um propósito maior, conseguiremos deixar um legado de possibilidades para as gerações futuras.