Entretém e anestesia infâncias cada vez mais cedo: uma pausa aqui, uma refeição ali, e, num virar e revirar dos dias, o ecrã com ligação à internet torna-se peça-chave na engrenagem da família.
Revezamo-nos em justificações – “faz parte”; “não dá para proibir”; “todas as gerações vêm com novos desafios” – e, numa passividade de grupo, vemos as crianças transitarem dos bonecos animados no YouTube para os jogos nas aplicações, até serem atraídas para as distracções das redes sociais, onde imagens de violência real circulam como conteúdos recreativos. Tudo parece aceitável, até mesmo a morte, desde que multiplique visualizações e seguidores.
Para quem, como eu, cresceu sem exposição permanente e descontrolada à crueldade humana, a repulsa perante vídeos de violência é imediata. Mas sê-lo-á para as gerações que hoje consomem agressões online a uma velocidade algorítmica, e sem supervisão adulta?
Desconfio que não. Pior: suspeito que essa exposição possa gerar uma certa compulsão para o consumo de mais e mais violência, até ao ponto em que não basta consumir e se torna aliciante produzir.
Não será por acaso que os ilícitos e crimes juvenis mais mediáticos dos últimos tempos tenham sido filmados por câmaras de telemóveis, e partilhados pelos próprios agressores, numa espécie de concurso perverso de popularidade.
Não será também por acaso que, diante do crescimento da chamada ‘machosfera’ – sobre a qual já escrevi aqui –, surjam notícias de violações em grupo de raparigas, como aquela que marcou o fim-de-semana, ou aquela que chocou o país no início do ano.
Neste caso, e segundo a comunicação social, a vítima, de 14 anos, terá sido violada por sete rapazes, num grupo liderado pelo ex-namorado que a atraiu para um encontro. Como se não bastasse a barbaridade do que viveu, a menor só conseguiu denunciar os factos cerca de um mês depois – a vergonha tem mesmo de mudar de lado –, quando foi confrontada pela mãe, numa altura em que as imagens dos abusos sexuais já tinham sido amplamente partilhadas.
Quantas vezes? Até quando?
Não sabemos ao certo, mas o que observamos deveria mobilizar-nos, e mobilizar o Estado para intervir junto das chamadas big techs, para conter a propagação das fake news e do ódio, movimento que no Brasil, ao contrário do que acontece em Portugal, tem suscitado amplo debate público.
Sem esta regulação, os efeitos da ‘algoritmização’ da vida prometem agravar-se, mergulhando cada vez mais os quotidianos numa disputa de conteúdos, onde as fronteiras entre bem e mal se tornarão tão artificiais quanto a inteligência.
Isso mesmo indicam vários estudos, que associam a crescente e precoce exposição de crianças e jovens a redes sociais a um maior risco de consumo e reprodução de violência.
A fundação Youth Endowment Fund (YEF), por exemplo, aplicou um questionário, em Inglaterra e no País de Gales, a 10 mil menores dos 13 aos 17 anos, dos quais 70% relataram ter visto, no ano anterior, imagens de violência real, ainda que a maioria o tenha feito de forma passiva. Ou seja: por ‘facilitação’ do algoritmo, evidência que acentua a necessidade de uma regulação. Para que, entre a vida e as redes, possamos continuar a ser humanos.



