Ficar ou partir
Viver num país é também construir parte de onde estamos.
Por vezes, o país parece falar através dos seus cartazes. Um enorme painel de imagens e frases que gritam nas paredes, nas paragens, nas redes. Gritam ódio, medo, desinformação. E o que dói não é apenas o que dizem — é o que permitem dizer. É a sensação de que tudo se pode dizer — desde que o alvo seja o outro, o diferente, o que não se encaixa no retrato de “nós” que alguns ainda insistem em defender.
Olho à minha volta e pergunto-me: será este o mesmo lugar que sempre chamei de casa? Ou é uma casa que deixou de me reconhecer? A agressão não vem apenas nas palavras — vem no silêncio de quem ouve e passa, sem indignação. No silêncio que normaliza, que disfarça de liberdade de expressão o que é, na verdade, permissão para ferir.
Ficar ou partir. Esta é a pergunta que habita muitos de nós — e que raramente se diz em voz alta. Porque ficar é resistir, mas resistir cansa. Porque partir é proteger-se, mas proteger-se dói. E o amor a um país não é um pacto de sofrimento; é um laço que precisa de recíproca entrega. O problema é quando apenas um dos lados entrega e o outro se permite agredir, impune, com cartazes, com slogans, com “piadas” que se infiltram na pele como pequenas lâminas.
No episódio com Miguel Cardoso, ele sublinhou uma ferida que muitos de nós conhecemos: “nascemos num país, aprendemos a amar, mas o país demonstra que não gosta de nós”. Esse não gostar está nas discriminações difíceis de ver, nas portas que permanecem fechadas, nas casas que recusam habitação com base na cor da pele. É esse o lugar onde ficares se torna acto político — ou exaustão.
E no diálogo com Ana Paula Costa emergiu outro ângulo: o da migração interior, da aposta pessoal em ficar “porque quero fazer parte da mudança”, mesmo quando os termómetros do presente vibram de intolerância. “Quero ficar em Portugal, mas o país precisa de mudanças, e eu quero fazer parte delas”. Essa frase ressoa em quem ama sem ilusões, em quem sabe que o querer não basta se não houver escuta, cuidado, reciprocidade.
Viver num país é também construir parte de onde estamos. E toda construção exige fundamentos — o da dignidade, o do respeito, o da escuta. Quando um país nos agride publicamente e não penaliza, é natural perguntar: será que ainda há espaço para ficar? Ficar, para quê? Para quem?
Mas também sei que partir não resolve a ferida — apenas muda o cenário. Porque a violência simbólica viaja connosco, gravada no corpo, na história, no silêncio que escolhemos ou deixamos escolher. A cada aeroporto, a cada viagem, lá está a pergunta: “De onde és?” E por trás dessa pergunta, tantas vezes, o mesmo olhar de suspeita que nos ensinou a sobreviver entre sorrisos.
Talvez o que mais nos doa seja o desamparo. A sensação de falar para dentro, de ver o inaceitável tornar-se banal, e de perceber que as instituições que deviam proteger permanecem distraídas, confortavelmente mudas.
E, mesmo assim, há quem fique. Quem insista em ensinar, criar, cuidar, pensar — como se a esperança ainda pudesse ser plantada entre as pedras. Ficar, então, torna-se uma escolha política e emocional: a recusa de entregar o espaço comum à barbárie.
Não há resposta certa. Ficar ou partir é uma decisão que se renova todos os dias, entre o amor e o cansaço. Entre a esperança e o medo. Mas o que não pode continuar é o silêncio. Porque o silêncio é o oxigénio do ódio — e cada vez que o deixamos respirar, ele cresce.
Talvez a pergunta não seja apenas se devemos ficar, mas que país escolhemos ser. E se, um dia, esse país nos escolhe de volta.


