Linha da frente
As metáforas escrevem-se a si próprias.
A pitoresca sala de cinema do Votiv Kino, no centro de Viena, onde dezenas de pessoas se juntam desde Dezembro de 2024 para - a meia luz - tricotar e ver filmes, é um local improvável para o aparecimento da resistência.
Em redor, a proliferação de todo o tipo de inteligências promove uma zona franca de dados pessoais, preferências futuras, ofertas de sexta-feira. Nos anúncios cada vez mais relevantes podemos ler o mapa e a aplicação dos dias, dos turnos. Podemos perceber como tudo o que foi previsto vai de facto acontecer, só que na ordem errada. O cerco aperta.
Saídas do confinamento de 2020 entre os milhões de pessoas com novos hábitos, novas necessidades, as duas fundadoras do clube de tricô e cinema propõem em Viena um programa radicalmente humano e assustadoramente contemporâneo: momentos fugazes e manuais, de pura fruição táctil e relacional.
As metáforas escrevem-se a si próprias - e abundam na história comum entre as tecnologias têxteis, digitais e financeiras: entre fios de código e redes de fibra óptica, os humanos tecem novos padrões nos seus tempos livres em frente a um ecrã de prata.
Talvez seja fácil, ou irresistível, ler nesta hiper-comunidade de nicho o prognóstico da revolta.
O quotidiano de labor, produtividade, obediência, performance e acumulação de dívida a que a maior parte dos habitantes do planeta é sujeito produz todo o tipo de consequência e disrupção social - e um regresso aos hábitos ancestrais e espírito da aldeia faz certamente parte das opções em cima da mesa para muitos.
Um ambiente de máquinas inteligentes, invisíveis e corruptas pode bem dar origem a uma reacção popular, naturalista e antiquada.
Mas de outro ângulo, o curioso encontro austríaco aponta para uma outra pista universal, uma resposta brava e suficientemente geral para evidenciar um programa, um método de sobrevivência.
O desperdício feliz, absurdo e arbitrário de tempo é a linha da frente numa batalha feroz e urgente entre diferentes visões do futuro. Hoje o tricô, amanhã a impressão 3D: existe uma versão dos acontecimentos em que as cidades não só alojam, mas potenciam uma nova modernidade.
Naquela cidade, naquela noite, o filme em exibição foi The Devil Wears Prada.



